segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A Gaita de Foles

Pipefest, Edimburgo - 2015
Não sei porquê, mas sempre que se fala da gaita de foles, a primeira associação que me ocorre é a Escócia. E num dia "bom" posso até, por momentos, vislumbrar a imagem de um escocês no cimo de uma colina, a tocar, solitário, o "Amazing Grace".

Digo que não sei porquê porque, ao longo da minha vida, cruzei-me já com várias versões, de outras tantas nacionalidades, do dito instrumento.

Durante o carnaval, ainda gaiato, assisti vezes sem conta ao desfile de grupos de Zés Pereiras, liderados por um ou dois tocadores de gaitas de foles (e 'perseguidos' por cabeçudos e gigantones).
No entretanto, talvez por me preocupar mais com os cabeçudos e me fascinarem mais os ritmos dos bombos, ignorei quase por completo os pobres dos tocadores de gaita.
Para mim Zés Pereiras sempre foram e serão sinónimo de bombos.

Mas estas não são as minhas únicas referências.
No primeiro dia em que cheguei à Galiza, mais concretamente a Santiago de Compostela, fui brindado nas ruas com modas e muinheiras, musicas onde também predomina o som da gaita de foles. Só que aqui esta é, sonoramente, mais doce e dançante.
Sempre que lá vou ou quando falo de Santiago, não consigo imaginar aquelas ruas sem lhe associar o som quase renascentista das musicas tradicionais galegas e, obviamente, o som da gaita de foles. Mas não chega para criar essa associação.

A gaita de foles escocesa tem outras força, outro sentimento.
No último verão, cruzei-me com um tipo de evento que desconhecia: um "pipefest".
Já tinha assistido a Tatoos militares mas nunca a nada como isto. Grupos de tocadores de gaita de foles escocesa, vindos dos mais diversos pontos do globo, reúnem-se anualmente para trocar experiências e tocar em conjunto. Aparentemente o ponto alto (ou um dos pontos altos) é uma concentração de todos os grupos, seguida de um desfile pelas ruas da cidade que acolhe o evento. E foi a esse desfile que eu assisti.

Durante o tempo de espera, para ir "aquecendo", cada grupo vai tocando à vez, exibindo destreza e algumas das suas habilidades, enquanto se vão deixando orgulhosamente fotografar por "outsiders" como eu.
Chegada a hora da parada, é dada ordem de formatura  e iniciado o desfile.
Em ritmo de marcha os grupos avançam de forma ordenada, decidida e quase intimidatória, tocando todos em simultâneo a mesma sequência de melodias, previamente acordadas.

Passado o último grupo, engrossei a multidão de espectadores que, pelo meio da rua seguiu atrás dos músicos, acompanhando o desfile até ao seu ponto de chegada.
Enquanto ia com a multidão, ao som de centenas de gaitas de foles e caixas de rufo, senti-me invadir por uma estranha sensação de felicidade e alegria, gerando quase um sentimento de orgulho por integrar o desfile.
Não sei se são as melodias, se o timbre ou se outra coisa qualquer, mas de facto em nenhuma das outras ocasiões aquele som foi tão hipnotizante.

É por essa razão que, se num jogo de associação de palavras me disserem "gaita de foles", vislumbro uma colina verdejante e digo "Escócia".


Informação adicional em:
A Gaita de Foles
Pipefest-2015

domingo, 1 de novembro de 2015

Uma ponte com sabores

Ponte de Ucanha, Portugal - 2012
As barreiras naturais foram sempre lugares limitadores. Montanhas ou rios marcaram fronteiras e ajudaram na defesa de povoações e territórios.
É por isso que os vales e as pontes foram sempre pontos importantes e criadores de riqueza. Quem quisesse ou necessitasse de ultrapassar esses obstáculos tinha de passar por ali.

Assim, a posse ou controlo de tais lugares era (e por vezes ainda é) um factor de poder.

Vem toda esta conversa a propósito da ponte fortificada de Ucanha, única no género em Portugal.
Aparentemente com origem numa antiga via romana, é, na forma actual, originária do séc. XII.
Pertenceu ao então couto do Mosteiro de Salzedas e marcava o limite desse mesmo couto. Servia para a sua defesa, bem como para o controlo e cobrança da passagem sobre o rio Varosa.

Com a evolução dos tempos e a proliferação das autoestradas e vias rápidas, depressa estas pequenas obras de arte foram sendo esquecidas e, em muitos casos, deixadas ao abandono e/ou à ruína.
Felizmente nem todas tiveram esse destino.

Com um cada vez maior apelo ao litoral e às praias, muita da riqueza do interior do nosso país vai ficando esquecido. 
Apesar de nos anos 80, termos corrido boa parte do norte e do seu interior, achámos por bem revisitar alguns dos lugares por onde já andáramos, mostrando muitas das ´pequenas pérolas' que conhecíamos ás gerações mais novas, que é como quem diz, à nossa filha.
E foi assim que, nas férias de 2012, chegámos a Ucanha e à sua inesquecível ponte.

Apesar de todo o aprumo do lugar e dos seus bons acessos, é nas pequenas coisas que se verifica a diferença entre o litoral e o interior.
Chegada a hora do almoço, não encontramos nas redondezas nenhum sítio para almoçar, que, de preferência, nos possibilitasse uma refeição rápida e despretensiosa, para podermos voltar à estrada e continuar as nossas "visitas".

Confrontados com o facto de não encontrarmos nada, no meio do silêncio rural de um principio de tarde quente de Agosto, rendemo-nos a ter de ir almoçar ao único restaurante a que tínhamos visto referência, num anuncio colocado na beira da estrada de acesso a Ucanha: a Tasquinha do Matias.

Não me perguntem porquê mas, de uma forma geral, sou avesso aos restaurantes ditos "típicos", algo que, também não sei porquê, associei a este.
Mas na falta de alternativas e com a hora já adiantada, tivemos de nos render ao destino.

Estacionámos o carro e seguimos as indicações que apontavam o caminho a percorrer até à referida tasquinha.
Agradavelmente, esta ficava junto à ponte, no lado oposto ao da torre, com uma pequena esplanada sobre o rio. Mas o calor não nos convidou a ficar na rua, pelo que entrámos.

Na sala, fresca e já meia vazia, com o aspecto de final de refeição, fomos recebidos cordialmente por uma senhora que nos confirmou ser ainda possível almoçar, apesar de alguns dos pratos já terem acabado.
De qualquer forma ainda havia escolha suficiente.

A chegada da comida foi uma agradável surpresa. Pratos despretenciosos feitos com mestria e ingredientes de um sabor divinal. E não, não era resultado da fome.
O mastigar das batatas, dos legumes ou da salada fez-me recuar à minha infância, relembrando-me sabores há muito esquecidos.
Eis como uma refeição que se pretendia rápida e sem história, se transformou num momento de degustação e reencontro de sabores, "arruinando" os planos previstos para a tarde. Até porque as sobremesas também pediam que se saboreassem.

Moral da história:
Por vezes, quando procuramos beber a cultura e o passado em pedras ancestrais, somos 'obrigados' a saborear muito dessa cultura numa tasquinha "plantada" junto ás mesmas, fazendo perdurar na memória sabores também eles quase perdidos pela modernidade.

Para que conste, quando voltar à Ucanha espero voltar à Tasca do Matias. E espero não sofrer nenhuma desilusão "modernista".


Uma última nota curiosa. Ao deambularmos pela pequena povoação de Ucanha apercebemo-nos que foi aqui que nasceu Leite de Vasconcelos, arqueólogo e etnólogo tão importante na nossa história recente.


Informação adicional em:
Ucanha
Ponte e Torre de Ucanha
Património Classificado

Leite de Vasconcelos

domingo, 18 de outubro de 2015

Uma travessia quântica

Ponte Oresund rumo á Suécia - 2009
Estando de férias, qual a melhor forma de atravessar a ponte Oresund? Pelo tabuleiro rodoviário ou pelo tabuleiro ferroviário?

Mas que raio é a ponte Oresund e porque é que se coloca essa questão, perguntarão.
Confesso que até 2009 também não sabia o que era, nem fazia ideia que existia. E a questão da sua travessia só se coloca porque necessitei de o fazer.

No nosso caso atravessamos... pelos dois tabuleiros, na mesma viagem.
Esse facto fê-la tornar-se parte das minhas pequenas histórias de férias.

Mas vamos por partes.
Copenhaga (Dinamarca) e Malmo (Suécia) são duas cidades vizinhas, separadas pelo estreito de Oresund.
Até ao ano 2000 estavam ligadas apenas por barco. Nesse ano a ponte foi inaugurada, ligando as duas cidades por "terra".

Na realidade a travessia faz-se através da ponte e de um túnel. A ponte liga a Dinamarca à ilha artificial de Peberholm, numa extensão de quase oito quilómetros (7.854 m), lugar onde, quer o comboio quer a estrada "mergulham" num túnel de perto de 4 Km, último percurso para atravessar o referido estreito e chegar à Suécia.

Ora, estando nós em Copenhaga, com a Suécia mesmo ali ao lado, seria pena não aproveitar o facto e ir até lá, mais não fosse para almoçar e ver as vistas.
Foi aí que se nos colocou a questão de "como atravessar a ponte".
Apesar dos guias dizerem que a travessia "por cima", pela estrada, é a mais bonita, a viagem de comboio é a mais prática, por ter mais horários, quer de ida quer de vinda, para além de ser mais barata.

Tomada a opção do comboio e tomado o pequeno almoço demos início à nossa viagem à Suécia.
Na estação, que ficava perto do hotel, compramos os bilhetes e embarcámos no comboio.
Atravessámos a ponte, mergulhamos no túnel e, passados poucos minutos depois de termos emergido na Suécia, parámos no meio do nada.
Como não se vislumbrava qualquer estação ou cidade e os restantes passageiros continuavam sentados, presumimos que ainda não tínhamos chegado ao nosso destino.

Após esperarmos alguns minutos, ouvimos pela instalação sonora do comboio o maquinista (presumo) dizer qualquer coisa numa língua estranha, repetindo-a noutra língua, igualmente estranha.
Dito isso (o que quer que tenha sido), o comboio recomeçou a andar em marcha moderada. Só que em sentido inverso, ou seja, voltando para a Dinamarca.

Como os restantes passageiros continuavam "calmos", presumimos que seria algo natural.
No entanto, assim que vislumbramos o revisor, a Manela foi-lhe perguntar o que é que se estava a passar.
De acordo com o relato do mesmo, alguém tinha sido atropelado pelo comboio anterior, estando a linha interrompida. Sendo assim, regressávamos a Copenhaga onde seria feito o transbordo para autocarros, para que a viagem pudesse chegar ao seu destino.

E assim foi. Voltámos a atravessar o túnel e depois a ponte e regressamos ao ponto de partida.
Saímos do comboio, encaminharam-nos para uma zona lateral da estação onde aguardamos pela chegada dos referidos autocarros.
Uns vinte minutos depois reiniciámos a nossa viagem. Atravessámos a ponte, agora pelo tabuleiro rodoviário (de facto com uma vista mais interessante e desocupada), reentramos no túnel e emergimos de novo na Suécia.
Desta vez de forma definitiva.

Nesta fase da história, não sei porquê, lembro-me sempre do "Mandarim", de Eça de Queirós.
Graças ao infortúnio de um desconhecido, podemos fazer a travessia da ponte pelos dois tabuleiros, na mesma viagem.
Com a vantagem de que não fiquei com o peso na consciência de me sentir responsável pela desgraça de alguém.


Informação adicional em:
Welcome to the Øresund Bridge
Øresund Bridge na Wikipedia


domingo, 11 de outubro de 2015

Bigger on the inside...


Police Phone Box, Earls Court, Londres - Agosto 2014
Quem passar em Earls Court depara-se, mesmo à saída da estação do metro, com uma cabine telefónica azul.
Nada de especial, não fosse ser objecto constante de fotografias tiradas, a maior parte das vezes, por jovens turistas que arrastam atrás de si a clássica mala de rodinhas, companhia de quem anda a viajar.
Não passa aparentemente de uma cabine telefónica da policia, igual a outras, outrora muito comuns na cidade de Londres, a partir das quais se podia fazer uma chamada de emergência direta à polícia, que podia localizar e socorrer rapidamente quem estivesse em situação difícil.

Mas é aí que está o engano dos incautos que por ela passam, ignorando a verdadeira natureza da cabine.
Não, não se trata de uma vulgar Police Box, mas sim de uma TARDIS, uma "Time And Relative Dimension In Space" time machine, uma máquina consciente que permite ao seu utilizador viajar no tempo e no espaço, dotada de um "circuito camaleão" que lhe permite adotar a aparência de um qualquer objeto comum no local e tempo de chegada. Maior por dentro do que o seu aspeto nos deixa adivinhar.
O sonho de qualquer viajante...

Está ali desde sempre, atraindo viajantes de todo o mundo que conhecem o segredo que ali se esconde e a rondam procurando ter um vislumbre do seu dono, conhecido apenas por Doctor.Who? perguntam os menos informados. Sim, esse mesmo: o viajante do tempo e do espaço que se apaixonou pela Terra e a escolheu, de todo o Universo, como planeta de adoção, depois de ter visto o seu próprio planeta destruído por uma guerra sem fim nem solução. Ninguém sabe o seu verdadeiro nome, mas quem precisa de ajuda não precisa de o chamar. A TARDIS sabe onde o deve levar.

Figura mítica da BBC, Doctor Who, o Doctor, como é conhecido, é a série televisiva com mais longa emissão conhecida, tendo iniciado emissão em 1963 e celebrado 50 anos de vida em 2013. Tornou-se ao longo dos anos uma série de culto que acompanhou o crescimento de pais e filhos, muitas vezes cúmplices na devoção pela série.

Num período em que a guerra fria e muitas guerras quentes se travavam no planeta, Doctor Who trouxe para o ecrã televisivo a recusa da guerra como solução, a linguagem do diálogo necessário e possível entre inimigos, a consciência de que a a violência apenas conduz à destruição do planeta e dos seres que o habitam. Falava de paz e compaixão, de perdão e memória. A violenta simplicidade das histórias conseguiu uma multidão de seguidores fiéis e tornou-se parte integrante da cultura popular britânica.
O culto renasceu em 2005 quando a BBC relançou a série que ganhou uma nova onda de seguidores, muitos deles filhos de antigos seguidores. São esta nova geração que vai a Earls Court prestar o seu tributo ao Doctor.

As Police Box azuis, comuns em Londres nos anos sessenta, foram progressivamente desmontadas durante os anos setenta e oitenta, mas esta foi ali levantada em 1996. Deveria ser apenas uma cabine como as outras, mas para os milhões de adeptos do Doctor Who ela é a TARDIS, um local de visita obrigatória.

Também nós por lá passámos e tirámos a inevitável fotografia, rondando a porta, na esperança de que alguém a abrisse e pudéssemos fianlmente saber quem era o verdadeiro Doctor.
Não tivemos essa sorte. Mas, para todos os efeitos, sabemos onde o podemos procurar.

É que nos tempos que correm nunca se sabe quando precisamos de ajuda...


Police Box
BBC - Doctor Who Site Oficial
TARDIS
Doctor Who
Somerton TARDIS


domingo, 4 de outubro de 2015

A Donzela de Orléans

Chinon, França - 2002
Quando chegámos a Chinon fomos surpreendidos por esta espectacular escultura.
A surpresa foi ainda maior quando nos apercebemos de que a personagem nela representada era Joana d'Arc.

Joana d'Arc é talvez uma das personagens mais comuns na estatuária francesa. Quem viaja por França facilmente "esbarra" numa imagem sua, seja numa grande cidade, seja numa humilde vila.
Se procurarmos num jardim, numa praça ou numa igreja, em algum deles a vamos encontrar.
Paris tem uma (pelo menos), equestre e dourada, junto ao Louvre, na place des Pyramides (aliás alvo de uma jocosa referência, nas aventuras de Adéle Blanc-Sec, de Tardi).

Curiosamente, este constante cruzar de caminhos com imagens de Joana d'Arc, nunca me tinha levado a procurar saber mais sobre ela. Até agora.
Face a tão poderosa visão colocou-se-me a questão: afinal quem é esta "donzela"?

Entre o que eu já sabia e o que entretanto descobri, de uma forma muito resumida e livre, aqui fica a sua história:
Filha de agricultores, nasceu em Janeiro de 1412, em Domrémy (mais tarde Domrémy-la-Pucelle) na Lorena.
Aos 13 anos começa a ouvir vozes que a incitam a frequentar a igreja e a tornam numa devota fervorosa. Aos 16, em plena Guerra dos Cem Anos, as referidas vozes dizem-lhe para ir ao encontro de Carlos VII, que se encontrava aqui, em Chinon, para libertar Orléans. E assim fez.
Desse encontro saiu a comandar um exército de 4.000 homens, rumo a Orléans, cidade que conquistou, dando início a um ciclo de muitas vitórias militares.
Quis então o destino que a guerra abandonasse o plano militar para se centrar mais no plano politico e diplomático.
Ao continuar a dar ouvidos às vozes que a atormentavam, tornou-se numa personagem incómoda para o rei.
Para sorte dos franceses e azar seu, foi capturada pelos opositores do rei e entregue aos ingleses. Estes rapidamente a acusam de bruxaria e mandam-na queimar, pondo assim fim à sua aventura.

Em 1920, após ter sido reabilitada, foi canonizada pelo Papa Bento XV, e em 1922 foi declarada padroeira de França, dando origem à proliferação das estátuas.

Na iconografia mais comum, ou aparece amarrada a um poste, a ser devorada pelas chamas, ou segurando uma espada e/ou um estandarte, ora a pé, ora a cavalo, mas sempre numa atitude entre o sonhador, o piedoso, ou o sofredor.
Uma ou outra imagem podem ser curiosas mas, na sua grande maioria, não passam de mais uma versão do "já visto".
Mas nada como aqui.

Esta escultura, feita em 1893 por Jules Roulleau, transmite determinação, força e movimento. Claro que o mérito é do artista, não da personagem.

À personagem, quanto muito, perdura o azar. A espaçosa praça onde a estátua foi colocada é hoje um parque de estacionamento.
Resta-lhe talvez continuar a sua cruzada, já não contra os ingleses mas agora contra o excesso de automóveis que a cerca.


Informação adicional em:
Joana d'Arc na Wikipédia
Chinon

domingo, 27 de setembro de 2015

O monte do Anjo


Mont Saint-Michel, França - 2002
Primeiro vê-se ao longe como um castelo de conto de fadas perdido na bruma. Depois vai-se avolumando no horizonte, no corpo de uma ilha que flutua no espaço. É preciso chegar muito perto para lhe perceber os contornos e os pormenores das casas e das ruas coroadas por uma abadia desenhada por um mestre do irreal e do fantástico.
Foi com esta visão que chegamos a Saint-Michel. Destino de sonho, ele próprio um sonho.

Chega-se a Saint-Michel de várias maneiras: pelas imagens nas revistas e nos folhetos turísticos, pela palavra de quem lá esteve e pelos livros sobre imaginário e esoterismo. E pela banda desenhada. O nosso percurso tinha sido ditado pelos livros e pela banda desenhada. Quando isto acontece, a maior parte das vezes acaba por trazer alguma decepção mas, neste caso, o que trouxe foi a percepção de que a realidade era bem maior que a ficção.


Chegamos bem cedo e conseguimos arrumar o carro mesmo na entrada da ilha. A baía estava seca até perder de vista e o monte erguia-se como um desenho saído das páginas de um livro.

A memória da visita à abadia e da íngreme subida até lá, perderam-se na bruma da visão que tivemos do alto, suspensos em silêncio, algures entre o céu e a areia.

Percebemos na descida a sorte que tínhamos tido ao chegar tão cedo. 
As ruas apinhadas de turistas que se acotovelavam e os parques de estacionamento repletos de carros que brilhavam ao sol retiravam ao lugar toda a magia. 
Entramos num pequeno restaurante onde comemos uns excelentes mexilhões e uma ainda mais excelente tarte Tatin. Depois arrancamos estrada fora. 

Paramos uns quilómetros mais à frente para rever a silhueta majestosa do monte. 

E dali de longe pudemos mais uma vez imaginá-lo apenas habitado pelo silêncio e pelos anjos.


O Mont Saint-Michel - video
Le Mont Saint-Michel
O Mont Saint-Michel na Wikipedia

domingo, 20 de setembro de 2015

The Fringe

                                                             Edinburgh Fringe, The Royal Mile, agosto 2015

Não há como acompanhar nem como ignorar.
As ruas enchem-se progressivamente de uma multidão de atores e espectadores. As mãos dos atores estendem-se na avidez de entregar os pequenos cartões do tamanho de um postal que podem significar sala cheia. Se nós, os possíveis espectadores, abrandamos o passo, somos rapidamente industriados sobre o que se vai passar na sala em questão. Teatralmente. Parece um jogo em que todos procuramos adiantar-nos ao adversário. E em que todos nos divertimos, qualquer que seja o resultado.
É o Fringe, o "antagonista-complemento" do Festival Internacional de Edimburgo. 
Nas ruas da cidade jogam-se por vezes os destinos de muitos atores, num país onde o teatro é por tradição "ensinado" desde a primária, e treinado duramente, por entre competição feroz e em larga escala, por quem quer fazer carreira. As ruas de Edimburgo são o palco daqueles que não conseguem aceder a uma das pequenas salas onde se desenrolam mais de dois mil espetáculos durante o mês de agosto. Por essas salas passaram muitos dos atores, músicos e cantores que hoje aplaudimos.

Se a vida é uma festa, Edimburgo é o salão onde decorre. 
A atmosfera inebria e, quando o Fringe abre oficialmente portas, a música que enche as ruas, a que escorre do Tattoo no castelo, o fogo de artifício que estoura num céu nublado, são o motivo perfeito para todos os risos e todos os pints que se bebem dentro e fora dos pubs.
Que interessa se chove? Ninguém nota!...

Ao mesmo tempo decorre o Festival de Arte e na segunda metade de Agosto sobrepõe-se-lhe o Festival do Livro. Depois vem o Storytelling Festival. Depois vem a feira de Natal. Depois o Hogmanay. E a Burns' Night. Depois o Beltane. A seguir o Film Festival. E o Festival de Ciência. Depois o Festival de Jazz e Blues. Depois um qualquer pretexto para outro festival. 
E, claro, logo de seguida, em agosto, o Fringe e o Festival outra vez.
Deve ser muito cansativo viver numa cidade que está sempre festa. 

Ora venha mais um pint!


domingo, 6 de setembro de 2015

Sarcasm?

Pubs - placards de exterior,  Edinburgh, 2015

Quanto mais vou até terras britânicas mais fascinada fico pelas qualidades que aquele povo tem. E não, não falo do teatro ou da literatura. 
Eu sei que o João Magueijo, com um saber de experiência feito, escreveu demoradamente e por motivos profundos, sobre os horrores da Grã Bretanha e as agruras que por ali passou, mas eu só encontro motivos de delícia e satisfação. 

Vamos lá a ver, a história daquele povo tem lados negros que não foram ainda totalmente trazidos à luz; aquilo que vemos nem sempre é aquilo que lá está; a corrupção e o deboche também lá existem, e as sombras de grey são bem mais que cinquenta. Também sei que o clima da ilha é bastante "cinzento", que a cozinha britânica não tem o fulgor da francesa e que a comida rápida é tão má como outra qualquer. É comida rápida. Para compensar há o Jamie Oliver, que é inglês, e o Gordon Ramsay, que é escocês. Segundo parece até cozinham bem e o primeiro dedicou um livro inteirinho à cozinha tradicional das ilhas britânicas. 

Mas temos de reconhecer que em termos de espírito prático e de "contra-politicamente-correto" ninguém lhes leva a palma.
Certas afirmações, certos conceitos, que, entre nós, gerariam uma corrente de protestos indignados, são em "terras de sua majestade" prova de um olhar sarcástico sobre a sociedade que nos deixa um pouco algures, na terra de ninguém entre o sorriso amarelo de quem tem medo de ser cúmplice de um pensamento pouco correto e a gargalhada funda do "era mesmo isto que apetecia fazer".

O pior é que não só pensam coisas "pouco próprias", como as publicitam em cartazes no meio da rua.
Gostava de ver o que acontecia por cá se os restaurantes do bairro fizessem as propostas feitas por dois respeitáveis pubs, imbuídos desse espírito prático, no centro de Edimburgo.
O mais grave é que muitos/muitas de nós pensam, ou já pensaram, em certas alturas, em soluções semelhantes (ou piores...) a essas.
Mas ninguém tem coragem de o confessar.
Não vá alguém pensar que podemos passar à prática.


The White Hart Inn, Edinburgh
The Newsroom, Edinburgh

domingo, 30 de agosto de 2015

Speedy's - Sandwich Bar & Cafe

Speedy's, Londres - 2014
Perdoem-me os que não são apreciadores ou conhecedores da série televisiva da BBC "Sherlock" mas ter estado no Speedy's e não referir o lugar seria um crime.

Para quem não está familiarizado com a série poderei dizer que esta é uma fabulosa adaptação das obras originais de Conan Doyle, transpostas para os nossos tempos.
Sherlock é um génio convencido e mimado, Watson um traumatizado veterano do Afeganistão e Moriarty um génio demente. Todas as interpretações são excelentes, suportadas por um script muito bem elaborado e uma realização desconcertante.
Apesar de terem sido realizados apenas dez episódios, três por temporada e um especial de Natal, foram os suficientes para criar um grupo desmesurado de fãs e uma venda invejável de memorabilia.

Curiosamente, quando pela primeira vez vi na televisão o anuncio à série, a figura de Sherlock pareceu-me excessiva. Um detective super convencido, pedante e que insultava toda a gente que o rodeava. Não me atraiu e, como tal, não vi nenhum dos episódios da série.
Quis o destino que, numa noite de pasmaceira em que não havia nada de interesse na televisão, o zapping me fizesse cruzar com um dos episódios da série, já a meio. 
Como não havia mais nada para ver, perguntei-me a mim mesmo " e porque não ver o que isto é?"
E foi a minha desgraça. No final do episódio estava rendido.

Mas o que é que tudo isto tem que ver com o Speedy's?
Na série, as filmagens da casa de Sherlock não se realizaram em Baker Street, rua muito movimentada, mas sim na pacata North Gower Street. Junto ao Speedy's.

Apesar do Speedy's já existir antes da série televisiva, foi com ela que ganhou notoriedade, passando de um desconhecido café de bairro ao local de romaria e culto dos fãs da série.

E foi assim que, numa calma manhã de Agosto, perto das 10 da manhã, emergimos da estação de metro de Euston, à procura do dito cujo café. De mapa na mão, lá fomos entrando no sossegado bairro. 
Ao fim de alguns metros, ao virar de uma esquina, ali estava ele. Um café de bairro, pacato, com duas mesas na esplanada, na altura ocupadas por alguns operários que faziam a sua pausa, para beber um café.

Contemplamos o exterior e decidimos, num acto corajoso, entrar e beber também nós um café (corajoso porque, de uma forma geral, o café em Londres é mau).
Ao abrirmos a porta apercebemo-nos da pequenez do lugar. Nas paredes fotografias das filmagens, numa decoração sóbria e despretenciosa, confirmavam a sua ligação à série.
O café estava sossegado mas cheio. Maioritariamente de fãs, uma vez que apenas duas ou três pessoas tinham ar de serem habitantes do bairro, Os restantes clientes destoavam completamente.

Face à lotação esgotada da sala, quando uma simpática empregada nos perguntou o que desejávamos, pedimos três "moka" para levar (o chocolate ameniza o gosto)
Já cá fora, sentados num muro junto ao café, a bebericar as nossas bebidas, fomo-nos apercebendo da silenciosa romaria que ia decorrendo na rua.

Tal como nós, notórios fãs, sós ou em grupo, de mala de viagem a rasto ou mochila às costas, iam cumprindo o mesmo ritual (não necessariamente por esta ordem): uma 'inspeção' ao lugar, uma fotografia ao café, uma fotografia frente ao café ou sentados na esplanada, uma volta pelas redondezas, uma espreitadela ao interior... enfim, tudo aquilo que um fã faz quando se encontra num lugar que, reconhecidamente, pertence ao universo da sua devoção.
Curiosamente sempre num 'registo' discreto, respeitoso, diria mesmo religioso, de quem não quer interromper nada mas apenas "viver" o lugar.

Esgotada a bebida e saboreado o lugar, seguimos o nosso caminho de regresso ao metro. Não sem antes notar uma pequena curiosidade: a casa que seria a morada de Sherlock na série, estava à venda.
Decididamente Holmes já não morava ali.


Informação adicional em:
Speedy's Cafe
Sherlockology - Speedy's cafe

Sherlock na Wikipedia
I Believe in Sherlock Holmes

domingo, 26 de julho de 2015

221 B

Baker Street, Londres - 2014
Baker Street. Em 1985, no primeiro ano que fomos a Londres, esta teria de ser uma das paragens obrigatórias.

A avidez de vermos o mais possível, no pouco tempo que tínhamos, obrigou-nos a fazer escolhas. Alguns museus ficaram de fora e noutros apenas visitamos uma ou outra sala. O mesmo aconteceu com ruas ou bairros. Se uns ficaram de fora do nosso roteiro, outros houve que apenas vimos de dentro de um autocarro.

Mas Baker Street era um destino obrigatório.
Sir Arthur Conan Doyle tornou-a uma das ruas mais populares de Londres ao situar ali a morada daquele que é, talvez, o mais famoso detective: Sherlock Holmes.

O passe de Londres levou-nos de metro até à estação de Baker Street, fazendo-nos sair directamente na rua do mesmo nome.
A rua, com passeios folgados e prédios de três andares, tinha bastante transito. De cabeça no ar, fomos seguindo a sequência dos números das portas até finalmente chegarmos ao tão desejado 221B.

A desilusão não poderia ser maior. Um prédio de habitação semelhante aos demais e nenhuma referência à celebridade da porta.
A imagem que me vem hoje à ideia, é de eu estar no passeio de uma rua com muito trânsito automóvel, a olhar para uma porta e eventualmente a pensar: "Pronto. É isto."

Felizmente nesse mesmo ano, numa das nossas voltas ao acaso, deparamo-nos, junto a Charing Cross, com o Sherlock Holmes... o Pub. Ali sim, havia uma sala, um pequeno museu, evocativo da personagem.

A recente realização de alguns (bons) filmes (nomeadamente o realizado por Guy Ritchie em 2009) e séries de televisão (entre boas - Sherlock da BBC - e menos boas - Elementary da CBS), reavivou a popularidade e a memória do detective.

Assim, quando no ano passado saímos do metro na estação de Baker Street, para mostrar a célebre morada à nossa filha, nada me preparava para o que nos esperava.
Ao contrário da primeira visita, não foi preciso procurara o número 221B.
Do outro lado da rua, ao longo do passeio formava-se uma longa fila de pessoas, sobretudo jovens, que aguardavam a entrada e visita, paga, da conhecida morada.
Na porta ao lado, no 221, entra-se agora para a loja de souvenirs, onde é possível comprar toda a memorabilia do detective.

Embora esta fosse uma visão próxima do que esperava encontrar na minha primeira visita, reconheço hoje que não sei qual das duas foi a mais desiludente.

Felizmente o Sherlock Holmes, o Pub, continuava igual a si mesmo, permitindo acabar o dia curando as 'mágoas' frente a um pint de boa cerveja.


Informação adicional em:
Sherlock Holmes
Sherlock Holmes na Wikipedia
Sherlock Holmes, o pub

domingo, 12 de julho de 2015

Estradas de água

Eclusa em Carcassone, França - 1996
Na escola, aprendi que os grandes rios eram importantes meios de transporte.
Como exemplo falavam-nos do Danúbio, do Reno ou do Ródano, entre outros. Estes rios eram percorridos por grandes barcos de mercadorias e de cruzeiro, sendo responsáveis por parte da economia e da riqueza dos países que atravessavam.
Em Portugal tínhamos o Tejo, o Douro e o Guadiana, já para não falar do Mondego, relegado para uma segunda categoria. Mas, tirando o transporte do vinho do Porto em barcos típicos, apenas à foz destes rios era dada alguma importância. Isto porque nós tínhamos o mar.

Olhando para Espanha o panorama que eu conhecia era semelhante ao nosso. Também têm o Tejo, o Douro e o Guadiana (chamados de uma forma um pouco diferente, claro), e mais um ou outro rio "grande", mas, importantes para a economia, eram mesmo os portos de mar.

Paralelamente, a minha experiência dizia-me que, no Verão, grande parte dos pequenos rios ou ribeiros secava, ou ficava perto do seco. E em Espanha imperava quase o deserto.

Como dei por adquiridos todos estes factos, não pensei muito mais no assunto.

Por tudo isto, quando pela primeira vez cheguei de carro a França, achei curioso e agradável encontrar frequentemente pequenos rios.
No entanto, ao contrario dos nossos, estes transportavam grandes quantidades de água. Por isso, não me foi estranho ver muitas vezes, ou atracados na margem ou andando de forma dolente, barcos de recreio e pequenas barcaças de transporte de mercadorias.

Com margens bem cuidadas, boa parte deles tinham agradáveis caminhos que acompanhavam o leito do rio. Foi ao ver esses caminhos que se me fez luz.
Eu deveria saber que aquilo não eram própriamente rios. Simenon já mos tinha descrito, de forma bem melancólica, em muitas das aventuras de Maigret. Eram canais.

Esta "descoberta" foi curiosa. Apesar de saber da sua existência, nunca pensei neles como algo com que me pudesse cruzar.
E o "pior" não foi isso. Foi o facto de que a sua presença se tornar normal na paisagem por onde quer que me deslocasse.
À medida que fui conhecendo a França, apercebi-me que existe praticamente uma segunda rede viária, mas de água. Grande parte de França está coberta por uma rede de canais. E essa rede de canais não se fica apenas por França. Entre canais e rios pode-se chegar à Bélgica, à Holanda ou à Alemanha.

Fascinante também foi ver toda a arquitectura e engenharia associada aos canais. Para permitir a ligação entre os diversos cursos de água existem dezenas, senão centenas de eclusas, assim como incontáveis pontes e viadutos.
Para espanto meu existe, pelo menos, um aqueduto de vários arcos que permite a passagem de um dos canais por cima de um vale, sobre uma estrada nacional.

Como referi, é fácil ver com frequência nos canais e pequenos rios, barcaças e barcos de recreio. Já junto ás eclusas a sua quantidade é bem maior.
Apercebi-me então da dimensão e importância que estas "estradas" têm no interior da Europa.

No entanto, à minha dimensão, o que mais me seduz nos canais é poder percorrer boa parte de França, calmamente, atravessando aldeias, bosques e campos de cultivo. Enfim, fazer umas férias bucólicas e rurais, com uma perspectiva completamente diferente de uma região ou país.

E, se apenas por ver os canais esta sedução já existia, ela aumentou substancialmente no dia em que, na 'Autoroute des Deux Mers', após algumas horas de viagem nuns quase constantes 130 Km/h, decidimos parar numa área de serviço, junto a Toulouse, para almoçar.
Descobrimos então que esta área de serviço era utilizada não só pelos utentes da auto estrada como também pelos do canal do Midi. E, acreditem, no final da refeição, achei que seria muito mais agradável embarcar num dos pequenos barcos que ali estavam e seguir viagem calmamente, à sombra das enormes árvores que ladeiam o canal, do que voltar para o carro, mesmo com ar condicionado, para retomar a autoestrada.

No horizonte ficou a esperança de um dia alugar um barco e percorrer languidamente algumas dessas "estradas de água".


Informação adicional em:
Vias navegáveis de França
Projecto Babel - Dicionario dos rios e canais
Carta das eclusas
Lista dos canais - Wikipedia

Aluguer de embarcações

domingo, 28 de junho de 2015

Com mil milhões de macacos

Château de Cheverny, França - 2004 
Estas são, talvez, as palavras mais conhecidos do capitão Haddock, companheiro inseparável do jornalista Tintin.
Curiosamente é também essa a expressão que nos vem à cabeça quando, frente à fachada do castelo de Cheverny, reconhecemos o célebre castelo de Moulinsart.

Enfim, não é exactamente igual.
Apesar de lhe ter servido de inspiração, Hergé foi um pouco mais modesto ao desenhar o castelo de Moulinsart e retirou os dois 'torreões' laterais que existem em Cheverny.
Mas não é por causa dessa diferença que deixaríamos de achar natural se, pela porta principal, víssemos sair o criado Nestor ou uma outra qualquer personagem das conhecidas aventuras.

É aliás esta ligação que está na origem da exposição montada numa das casas anexas ao castelo. 
Nessa exposição, dedicada às aventuras de Tintin, é possível ver ou entrar em muitas das salas por onde se desenrolaram algumas das suas aventuras.
Com o mesmo espectro de cores dos álbuns de banda desenhada, podemos ver, entre outras, a sala do piano da Castafiore, o laboratório de Tournesol com o célebre submarino em forma de tubarão, ou as caves onde Tintin foi aprisionado pelos irmãos Pardal.

Mas Cheverny não se resume à exposição das aventuras de Tintin. Ao entrarmos na mansão, o interior que admiramos é digno de um 'château', a condizer com o seu aspecto exterior. As salas visitáveis são amplas, agradáveis e bem decoradas.

Seja porque a decoração das salas tenha sido bem concebida, seja porque os actuais proprietários também lá vivem, ou porque o interior serviu, também ele, de inspiração a Hergé (ou talvez por todas estas razões), estar e atravessar as diversas divisões transmite-nos uma sensação bastante acolhedora.
Ao contrario de outros palácios ou castelos que visitei, onde tudo é muito "rígido" dando-nos a sensação de atravessar uma exposição, aqui o ambiente parece mais informal, transmitindo uma atmosfera mais familiar ou "caseira".
Ao passear por aquelas salas ficou-me a sensação de estar a visitar a casa de um amigo ou conhecido, apesar de mais abonado do que o habitual.

Quando em alguma ocasião, falo da visita ao vale do Loire e aos seus castelos, é essa memória acolhedora que associo a Cheverny.
De tal forma que poderia dizer que foi o dia em que, verdadeiramente, visitei a casa de Tintin.


Informação adicional em:
Chateau de Cheverny
Cheverny na Wikipedia

domingo, 14 de junho de 2015

A cabine telefónica

Londres, Inglaterra - 2006
Para quem parte de viajem, uma questão que se lhe coloca é a de como comunicar com quem não nos acompanhou na viagem mas que, de alguma forma, espera receber noticias nossas.

Quando comecei nestas andanças a forma mais rápida de comunicar com alguém era o telegrama.
Embora não falássemos directamente com o destinatário, tínhamos a certeza de que a mensagem era entregue, e no mais curto espaço de tempo.
Mas os telegramas tinham como problema o de serem caros. Como tal, eram normalmente utilizados em último recurso e para notícias urgentes. Normalmente e infelizmente, más.
Por essa razão nunca foi considerado por nós como meio para dizer que estava tudo bem e que nos estávamos a divertir muito.

No extremo oposto ficava a carta ou melhor ainda, o postal.
Barato, poucas palavras e, como bónus, uma imagem para complementar as palavras. Adicionalmente serviam como um bom pretexto para ficar numa explanada a gozar o descanso enquanto os escrevíamos.
No entanto peca por ser lento. Por vezes mesmo muito lento. Quantas vezes não cheguei eu a casa, vindo de férias, antes do bendito postal chegar ao seu destino.

No meio termo estava o telefone. Não era muito caro e tinha a vantagem de ser imediato e interactivo.
Foi por isso eleito por nós como o meio priveligiado para comunicar com quem nos estava mais próximo. Mas nem sempre o seu uso era fácil..

Nos primórdios das nossas viagens todos os telefones eram fixos. E os telefones públicos dividiam-se em três categorias (por ordem de preferência):
1) As cabines telefónicas (no início quase uma curiosidade, nomeadamente fora dos grandes centros);
2) As estações dos Correios (quando as havia e, de uma forma geral, apenas disponíveis durante as horas de expediente) e
3) Os estabelecimentos (normalmente cafés) cujo telefone tinha acoplado um contador de impulsos, geralmente cobrados a um preço elevado, para justificar o "favor" que nos estavam a fazer.

Ainda nessa altura as ligações telefónicas tinham outras particularidades. Ouviam-se muitos ruídos na linha e, quanto maior a distâncias, mais "longe" ouvíamos o destinatário (sendo, por vezes, quase obrigados a gritar).

Bom, mas pelo facto de termos acesso a um telefone não tínhamos ainda a garantia de conseguirmos falar com a pessoa que pertendiamos. Acontecia por vezes que, quando ligávamos, o destinatário não estava perto do aparelho do outro lado e, por isso, não atendia a chamada.

No entanto eram todas estas condicionantes que davam alguma emoção ao acto de telefonar.
Assim, durante as férias, havia sempre pelo menos um dia em que íamos telefonar. De preferência numa hora em que sabíamos que o destinatário estava do outro lado, quer por lhe conhecermos os hábitos, quer por termos previamente combinado uma hora para o fazer.

Como o horário mais cómodo (e barato) era o nocturno, as cabines telefónicas foram sempre os nossos locais preferidos para telefonar. No entanto traziam outro problema adicional: as moedas.
Para remediar essa questão, durante o dia, íamos coleccionando moedas compatíveis com as cabines a que tínhamos acesso. Mas os possíveis problemas ainda não terminavam aqui. Mesmo com as tão desejadas moedas não tínhamos ainda a garantia de conseguir fazer a ligação. Os telefones também tinham as suas manias.
Por vezes o telefone "comia" a moeda e não fazia a ligação, outras vezes (infelizmente raras) fazia a ligação e recusava-se a ficar com as moedas e, por último, havia a situação em que, recusando-se a "engolir" o dinheiro, o telefone cortava a chamada ao fim de poucos segundos de ligação.

Foi por causa de uma situação como esta última que, entre nós, ficou célebre um telefonema feito, a partir de Viana do Castelo, para casa das nossas mães (uma chamada para cada casa).
Como a cabina se recusava a "engolir" as moedas a conversa foi efectuada no intervalo de tempo que mediava a ligação e o seu corte automático. Obviamente a conversa só foi possível com muitas (muitas mesmo) remarcações do número do destino, num jogo hilariante com a cabina.

Quem não achou muita piada à situação foram os futuros utilizadores dessa mesma cabina.
Só nos apercebemos de que havia alguém à espera para telefonar quando abrimos a porta da cabine, para sair. E foi com cara de poucos amigos que nos olharam quando finalmente saímos, ainda a rir, possivelmente julgando que a nossa atitude se devia a uma falta de dinheiro e não à falta de colaboração do aparelho.

Com o avanço tecnológico começaram a surgir cabines que devolviam troco e, pasme-se, cartões pré-pagos (vulgo crédifones) que evitavam a necessidade de "catar" moedas durante o dia, para poder telefonar à noite. Claro que, depois de gastos, os cartões também permitiram uma interessante colecção.

Com o advento do telemóvel (e mais tarde do roaming) o problema de encontrar uma cabine para telefonar foi desaparecendo, sendo gradualmente substituído pelo problema de "encontrar" um local com rede.
No entanto, no início, com o custo da comunicação elevado, continuamos a preferir utilizar as cabines que íamos encontrando pelo caminho (aumentando a já referida colecção de cartões).

A partir do momento em que os custos das comunicações baixaram drasticamente e a Internet e as ligações wi-fi se generalizaram, o contacto com quem quer que seja tornou-se quase uma 'não preocupação'.
Hoje é basicamente indiferente se nos encontramos na praia, em Lisboa, Londres ou algures na Finlândia.

Em compensação as nossas outrora tão desejadas cabines telefónicas vão desaparecendo da paisagem urbana sem que notemos a sua falta.
Num destes dias passei por alguém que falava num telefone público, situação que estranhei por inusitada. O pior foi ser num local por onde passo quase todos os dias e não me ter apercebido sequer que aquela, agora velha e decadente, cabine telefónica ali se encontrava.

Agora, quando reparo num telefone público serve-me apenas para lembrar, sem nostalgia, das muitas peripécias por que passei, por causa de um daqueles aparelhos.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A grande travessia

Nascer do dia, Espanha - 2008
Quando se pensa em chegar por estrada de Portugal á 'Europa', temos de contar com um grande obstáculo. Não, não estou a falar dos Pirenéus. Estou a falar da Espanha.

Da primeira vez que planeamos chegar a França, de carro, avisaram-nos do problema. 
"O pior é passar Espanha", disseram-nos os nossos amigos que já se tinham lançado nessa grande aventura de ir de carro à descoberta da Europa.

Numa altura em que quase não havia autoestradas, só atravessar Espanha fazia-nos distanciar de França mais de 15 horas de viagem, fora as paragens e o chegar à fronteira (Elvas dista de Perpignan mais de 1.200 Kms, sendo um pouco menos para Bayone, +/- 900 Kms, boa parte na chamada "estrada dos emigrantes").

Assim, colocaram-se-nos duas alternativas: atravessar de dia, fazendo uma paragem para dormir, ou atravessar de noite, dormindo depois já do 'lado de lá'. Isto porque 'não ir' não era alternativa.

O pouco que conhecíamos de Espanha era suficiente para sabermos que, no Verão, as temperaturas no centro do país são bastante elevadas. Por outro lado, perder dois preciosos dias de férias só para chegar aos Pirenéus era um custo elevado.

Foi assim que decidimos seguir os conselhos dos nossos amigos e atravessar Espanha durante a noite.

Em 1991, conduzindo apenas a Manela, saímos de casa por volta das 10 da manhã, chegámos ao Caia no final da tarde, seguimos em direcção a Madrid, Zaragoça (onde entramos pela primeira vez em autoestrada), Barcelona e, já perto do meio-dia, chegámos finalmente a Figueras, onde nos aguardava o hotel.
Chegámos cansados (a Manela bem mais do que eu), esfomeados e com o para-brisas cheio de insectos mortos.

Nesse dia tomamos duas decisões importantes. Uma foi dormir assim que possível, a outra foi nunca mais atravessar Espanha com apenas um condutor.

A travessia seguinte foi em 1994.
Com dois condutores (eu entretanto tirei a carta) a coisa já foi mais fácil.
Mudanças de turno mais ou menos de duas em duas horas, permitiram ir esticando as pernas e descansar mais os olhos e o corpo. Para além disso, graças aos dinheiros da CEE, as autovias e as autopistas começaram a proliferar em Espanha, assim como as autoestradas em Portugal.
Saímos mais tarde de casa e chegámos bem mais cedo e mais "frescos" a Andorra. 

Com a continua melhoria das estradas (trajecto quase todo em via dupla) e do carro (maior, ar condicionado, direcção assistida,...), em 2008 saímos de casa perto das 8 da noite, paramos para "jantar" qualquer coisa e, mantendo as mudanças de turno ao fim de em duas horas, por volta das 7-8 da manhã, já tínhamos estacionado o carro e estávamos a tomar o pequeno almoço em Bayone.

O cansaço à chegada ainda é grande. Mas já não se compara. Quanto ao para-brisas, esse continua cheio de insectos mortos, apesar de os irmos limpando, de vez em quando, nas áreas de serviço.

Já em terras de França ainda é necessário fazer uma pausa para dormir e recuperar forças. Mas ao olharmos o mapa, temos à nossa frente toda a Europa para descobrir. 
Agora o mais difícil é escolher a paragem seguinte.

domingo, 24 de maio de 2015

Macacos

A Floresta dos Macacos, França - 1994
A França foi, até ao presente, o país por onde passei e encontrei mais lugares para visitar.
Numa qualquer vila, no meio do nada, é facil existirem vários pontos de interesse, sejam eles históricos, naturais ou criados para o efeito.

Na nossa passagem pela região do Lot ficamos acampados em Hospitalet, povoação sobranceira a Rocamadour.

Próximo do parque de campismo e de fácil deslocação a pé, para além do centro da povoação (onde há restaurantes, um multibanco e lojas de souvenirs) e de Rocamadour que fica quase por baixo, no vale, há ainda uma gruta pré-histórica, uma exposição/museu particular de miniaturas de comboios e "A Floresta dos Macacos".

Como ficámos lá alguns dias e a Joana era pequena, decidimos num desses dias visitar a Floresta dos Macacos.

A Floresta dos Macacos é um parque natural para onde foram levadas algumas famílias de macacos do Norte de África, de uma espécie em risco (Magot ou Macaco de Gibraltar), para estudo e preservação.
Neste parque os visitantes atravessam a reserva, por um percurso circular pré estabelecido, permitindo-lhes observar as famílias de macacos ali existentes e interagir com eles.

Na manhã da nossa visita decidi eu (erradamente) vestir uma camisa lavada, na esperança de que esta durasse pelo menos dois dias.
Assim, com um ar mais fresco e lavado, lá fomos nós até ao parque para ver os macacos (e eles verem-nos a nós, claro).
Na entrada, para facilitar o contacto com os animais, é-nos fornecida uma mão cheia de pipocas, pitéu que não é para comermos pelo caminho mas sim para ir distribuindo aos macacos, ao longo do percurso, permitindo-nos aproximar deles.

Como para a Joana andar com as pipocas na mão causava algumas dificuldades, pediu-me que levasse as minhas e as dela. Para isso, juntei as duas mãos em concha, permitindo-lhe ir tirando as pipocas para as dar aos bichos.

Estávamos nós no meio dos macacos, com a Joana a distribuir pipocas pelos presentes, quando um deles se apercebeu da fonte das pipocas e começou a tentar tirar-mas da mão.

Achando-me mais esperto do que o macaquinho, levantei os braços para que estas ficassem fora do seu alcance.
Nessa altura ouvi um dos seguranças do parque, surgido sabe-se lá de onde (juro que não tinha dado por ele), a ordenar-me que largasse as pipocas e as deitasse para o chão.

Antes de eu poder fazer alguma coisa e mais rápido do que a materialização do guarda, o macaco trepou por mim acima, direito às minhas mãos, decidido a comer as pipocas que eu tentava esconder.

Sendo eu bem mandado e já com o macaquinho ao colo, obedeci à ordem que ouvira, largando todas as pipocas que se escondiam nas minhas mãos, tirando-me de cima o peso extra do macaco.

De acordo com o guarda os animais não são perigosos. No entanto não convém criar conflitos com eles porque, estando em estado selvagem, não se sabe qual a reacção que têm, podendo esta ser mais violenta.

Praticamente sem pipocas (sobravam apenas as da Manela), lá fomos percorrendo o resto do caminho, animados com a nova aventura e imaginando o porquê de, de vez em quando, encontrarmos grupos de macacos a deliciarem-se com um monte de pipocas espalhadas pelo chão.

Finda a visita, já perto da hora do almoço, regressámos ao parque de campismo com mais uma história para contar. Infelizmente a nova história ficou também gravada na minha camisa lavada, na forma de pegadas enlameadas, obrigando-me a nova muda de roupa.


Informação adicional em:

La Foret des Singes

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Acampar

Crystal Palace, Londres - 1985

1985
Quando chegámos a Londres, em agosto de 85, íamos em busca da cidade-mito para onde confluíam milhares de jovens de todo o mundo, em busca da essência da liberdade.
Para trás ficavam dois dias de camioneta (os autocarros da Eurolines corriam a Europa) até Paris, uns dias de descanso e visita à cidade, mais umas horas de camioneta e a travessia da Mancha em ferry boat.

Não conheço ninguém que tenha chegado a Inglaterra de barco e avistado as falésias brancas de Dover, e feito uma entrada triunfal em Londres às 5 da manhã, com o dia a nascer, pela ponte de Westminster.
A primeira visão que eu e o Mário tivemos da cidade, foi o Palácio de Westminster e o Big Ben. Só isso chegou para me apaixonar imediatamente pela cidade.
Quando saímos na estação de Victoria ainda não estavamos tão endinheirados que tivessemos reserva num hotel. Não. As mochilas que transportavamos levavam tudo o que era necessário para acampar confortavelmente.
Só era preciso encontrar um parque. Os postos de Turismo, de aspeto eficiente, estavam ali para isso.
Uma senhora deu-nos um mapa da cidade e as indicações de metro necessárias para chegar ao parque de campismo de Acton. Era um bocadinho longe mas o trajeto era rápido.

Trazíamos “na bagagem” as máquinas fotográficas, Travellers Cheques, e bilhetes de comboio que nos iriam permitir correr a Grã-Bretanha durante oito dias. Só faltava montar a tenda.
Quando saímos na estação de Acton deparámo-nos com um outro lado de Londres. Um bairro de subúrbio, de aspeto pobre e mal cuidado, semeado de gente de aspeto dúbio. Mas o cenário não estava completo – o parque de campismo que se nos deparou só podia ser produto de uma alucinação. Num recinto enorme, de limpeza mais que duvidosa, erguiam-se tendas verdes de exército, onde dormiam aqueles que não tinham tenda, uma tenda coletiva que mais parecia uma tenda de circo, não se viam instalações sanitárias e tudo parecia saído de um campo de refugiados.
Dirigimo-nos à recepção na esperança de que nos dissessem que aquilo não era o parque que procurávamos. Mas não. Gente desagradável e notoriamente cansada e sem paciência, atendia quem chegava. Disseram-nos desabridamente que montar a tenda era um risco, pois podia ser roubada, e que convinha que deixassemos as mochilas e os nossos pertences na recepção. Deram-nos, a cada um, um saco enorme de lona para meter as mochilas e tudo o mais lá dentro, e um  cadeado para o fechar.
Só me apetecia chorar e voltar para casa. Ainda tentámos fazer o que nos disseram mas a voz da razão falou mais alto. Que diabo... devia haver gente que acampava. E com roulotes. Gente que não podia permitir que lhe roubassem o meio de transporte. Não, ali não ficávamos. Nem que andássemos oito dias de comboio e só guardássemos de Londres a “entrada triunfal”. Que se “lixassem”... Devolvemos sacos e cadeados numa profunda irritação e num surdo desespero de quem está perdido em terra estranha.

Metemo-nos no metro e voltámos ao turismo a Victoria Station.
Reclamámos contra o que tinhamos visto e ameaçámos fazer queixa a alguém. Um funcionário mais atento deu-nos outra indicação, desta vez a sul de Londres. Apanhámos um autocarro direto que levou quase uma hora a chegar lá e nos permitiu ver outros bairros, de pequenas casinhas iguais e bem cuidadas.

Quando descemos na última paragem e virámos a esquina, as bandeiras hasteadas à porta de um recinto cercado, cheio de árvores e flores, devolveram-nos o sorriso rapidamente. A simpatia do casal escocês que nos recebeu acompanhou-nos todo o tempo que lá ficámos.

Quando acabámos de montar a tenda sentámo-nos a olhar o vale que abrigara o edifício da mais célebre exposição do século XIX: estavamos em Crystal Palace.
E sentimo-nos em casa.

domingo, 10 de maio de 2015

O Rali de Portugal

Peninha, Serra de Sintra, Portugal - 1985
O meu primeiro contacto com o rali deu-se na minha juventude.
Lembro-me dos carros passarem por Torres a seguir ao jantar, num troço de ligação a Lisboa.
Podiam não estar em competição mas, para nós, era a mesma emoção. O ruído dos motores, os potentes projectores na frente dos carros e a multidão que se juntava na avenida e ao longo do trajecto para Lisboa, a vibrar com cada carro que passava.
Com um pouco de sorte um dos carros parava para se abastecer, numa das bombas de gasolina, permitindo uma visão mais demorada e próxima, nomeadamente do interior.
Havia ainda alguém com o jornal 'O Motor' na mão que, pelo número do carro, ia identificando quem passava, fazendo o computo dos que já tínhamos visto passar e dos que ainda faltava ver.

A este propósito lembro-me sempre de um episódio caricato.
Nesse ano a revista 'Tintin' publicava a aventura de Jean Graton “Rali em Portugal” (“Cinq filles dans la course”) que, por sinal, coincidiu com as datas do rali, na altura denominado de TAP.
Como de costume, após o jantar, fomos ver passar os carros e "controlar" as passagens. Como a saída de casa nem sempre era fácil (tinha que ser autorizada pelos pais) havia sempre um ou outro que se atrasava, pedindo, ao chegar, um ponto de situação das passagens para saber o que já tinha perdido.
Estávamos nós a aguardar a passagem de mais um carro quando chega um dos nossos amigos retardatários, esbaforido e quase sem folgo a perguntar avidamente "o Michel Vaillant já passou?". Perante as gargalhadas gerais, tomou consciência da pior foma de que o seu herói afinal não existia.

Porque o horário de passagem mudou ou porque o trajecto de ligação foi alterado, o que é um facto é que o meu interesse pelo rali passou para segundo plano e desvaneceu-se.

Retomei o contacto com o rali em 1978. A sobra de um lugar num carro de entusiastas fez-me participar na "romaria" a Montejunto onde pude ver um dos carros de rali mais bonitos: o Lancia Stratos HF.
Mas as estrelas nesse ano eram outras.
O Fiat 131 Abart de Markku Alén e o Ford Escort RS de Hannu Mikkola fizeram toda a emoção. Separados na classificação por segundos levaram até à noite de Sintra milhares de pessoas, entre elas eu.

A etapa consistia em três passagens por três troços cronometrados, pelo que, uma vez arranjado um lugar para ver, tínhamos espectáculo para toda a noite.
Nessa noite ficamos na Lagoa Azul (primeiro troço do 'circuito') com os olhos na estrada e o ouvido num transistor. E a emoção manteve-se até ao último troço da terceira passagem, justificando a noitada.

Na última passagem, junto ao ponto de partida assisti à razão do fim das noites de Sintra. Quando os carros estavam a segundos de partir, ligavam os projectores na sua máxima potência e apenas se via à sua frente uma enorme massa de pessoas, no lugar onde deveria estar a estrada. À mediada que o carro arrancava e acelerava as pessoas afastavam-se, abrindo-se, à velocidade do carro, uma clareira que permitia ao piloto vislumbrar alguns metros do alcatrão. Isto, claro, salpicado com dezenas de flashes.

Não voltei a assistir ao rali mas continuei a acompanhar as provas.

Nos anos 80, com a ascensão dos potentes carros do grupo B, a paixão pelos ralis de um colega de trabalho e o prazer da fotografia, fez-me voltar a Sintra.
Agora de dia, máquina fotográfica ao peito, aconselhou-me a prudência que fugisse da multidão e dos lugares mais "espectaculares", prudência essa que era partilhada pela Manela e pelo Paulo, companheiros na aventura.
Motivava-nos estar perto dos carros, sentir o ambiente e experimentar fotografar em condições extremas.

Foi assim durante alguns anos. No dia do rali, madrugávamos para ir ver os carros.
Até que, em 86, na aldeia do Pé da Serra, recebemos a noticia do acidente mortal que ocorrera no troço da Lagoa Azul e do consequente cancelamento da etapa.
Este trágico acidente marcou o fim da etapa de Sintra e, com ela, a nossa ida ao rali

Hoje, quando olho para as fotografias da altura, vêm-me à memória as caminhadas quase nocturnas pelo meio da serra, o ruído dos motores que cortavam aquele ambiente paradisíaco e calmo, e, claro, a espera pela revelação dos rolos fotográficos, "puxados" a sensibilidades limite. Os resultados fotográficos do dia tinham o gosto amargo das fotografias falhadas mas também doce sabor de uma foto bem conseguida.


Informação adicional em:

domingo, 3 de maio de 2015

Passeios de domingo

Londres, Inglaterra - 2010
Foi num domingo de Agosto. 
O metro tinha-nos deixado junto à praça de Trafalgar. O dia estava solarengo, convidando a passear, ou seja, enfiarmo-nos num qualquer museu ou edifício estava fora de questão.

Antes de sairmos do hotel tínhamos tomado, calmamente, um substancial pequeno almoço, pelo que a ideia de caminhar pelas ruas, sem um destino específico, fugindo dos turistas e da confusão, foi uma opção unanimemente aceite.

Depois de andarmos algum tempo ao acaso, demos por nós na City, numa qualquer praça secundária, no meio de uma mistura de edifícios modernos e antigos.

O facto de não ser um dia de trabalho dava àquelas ruas, e particularmente aquele lugar, uma calma pouco habitual, fazendo-me lembrar as manhãs de domingo da minha infância, quando não se via vivalma na rua por estar tudo ainda a preguiçar em casa. 
Não fosse o ruído de fundo de um longínquo trânsito automóvel e eu diria que só faltava mesmo ouvir o cantar de um canário numa gaiola, pendurada numa qualquer janela, para o paralelismo ser perfeito.

Enquanto estava neste meu pensamento nostálgico, o meu olhar foi percorrendo os edifícios que nos circundavam, quiçá na esperança de ver uma janela onde colocar o dito canário.
Foi nesse deambular pelas fachadas que me apercebi de algo inusitado.
Num dos edifícios mais afastados, aí pelo que seria um sétimo ou oitavo andar, estavam três figuras penduradas em cabos que vinham do telhado.

Primeiro quase imóveis, davam a sensação de que estariam ali reunidas para apanhar um pouco de ar e sol e conviver umas com as outras.
Passado um pouco desceram lentamente mais uns "andares", fazendo nova pausa.

A visão era estranha embora curiosa e serviu para umas breves trocas de comentários entre nós.
De facto, porque não aproveitar os enormes edifícios de escritórios, quando estes estão "adormecidos", para actividades de lazer? E se não temos montanhas por perto, porque não praticar "alpinismo" e/ou escalada numa cidade?

Passado o impacto do inesperado fiquei com alguma inveja daquele grupo. Para além do desporto em si, a perspectiva da cidade, durante todo o percurso, deveria ser fantástica, partindo do principio de que não iria ter vertigens e ficar colado ao chão, no telhado.

Depois de comentarmos entre nós a curiosidade do facto seguimos o nosso percurso domingueiro, na descoberta de outras facetas de uma Londres desconhecida.


PS: Espero que a minha interpretação dos factos esteja correcta e não tenha sido testemunha de nenhum assalto arrojado.