sábado, 5 de dezembro de 2020

Um céu mais azul

2020 - Santa Cruz
 Neste período de confinamento, nos dias solarengos, sempre que saio para o meu quintal, olho para cima, para o céu, para o contemplar.

Ou imaculadamente azul, ou salpicado de nuvens com contornos graciosos, o céu voltou a um estado de pureza que há muito tempo não me lembro de ver.

Não foi, no entanto, o que aconteceu num dia destes.
Por cima do azul (verdadeiramente celeste), um risco branco desfigurava a uniformidade do horizonte.
Um traço largo, esborratado, e que se começava a retorcer ao sabor dos ventos.

À medida que o meu olhar o percorreu e se aproximou da outra ponta, este foi-se afilando e transformando num risco bem definido.
Na ponta, bem nítida, a silhueta do criminoso: um avião.

O crescente tráfego aéreo habituou-nos a ver o céu "sujo", cheio de longos riscos entrecruzados, mais ou menos esbatidos, fazendo lembrar aquelas paredes urbanas que, independentemente de serem lisas ou com desenhos, estão sempre grafitadas com riscos ou tags inestéticos.

No entanto, esta quase extinção do transporte aéreo, fez o céu regressar ao seu anterior estado de pureza. Diria que quase passou de um “caos urbano” para uma “harmonia rural”.

Este "novo" céu remeteu-me também para lembranças do passado.

Na minha infância o céu era quase tão “limpo” como o destes dias.
Nessa altura, vislumbrar um avião no céu era um acontecimento, não raro, mas mesmo assim digno de nota.
Olhar para aquele ponto no céu fazia-nos sonhar com viagens e viajar. Não nos interessava qual o destino que aquele avião levava. Apenas sabíamos que ia.

Talvez tenha sido esse sonho que me fez querer viajar. E, felizmente, já tive a oportunidade de ir.
Mas rever os céus da minha infância faz-me questionar se não deveríamos repensar as nossas viagens e, sobretudo, a forma como as fazemos.

É fascinante tomar o pequeno almoço em Paris e vir almoçar a casa. Mas, viajar de avião, de tão acessível, tornou-se um produto de uso "descartável" e, como tal, poluente.

Não querendo diabolizar o avião ou retirar-lhe o mérito de ter tornado o mundo mais próximo, julgo que o seu uso, como o de certos medicamentos, deve ser feito com moderação.
Viajar não é apenas estar no destino.

Se por questões ecológicas, passámos a condenar o nosso vizinho que desce a rua de carro para beber um café ou comprar o jornal (quando bem o podia fazer indo a pé), talvez seja altura de começarmos a condenar quem frequentemente viaja de avião para passar uma noite num qualquer destino longínquo, apenas "porque sim", pelo facto de ser barato e de o poder fazer.

Talvez seja altura de voltarmos a gostar de poder contemplar um céu imaculado, e relembrarmos as palavras de T.S. Eliot: “É a jornada e não a chegada que importa”.


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Pinnies


2018 - Edimburgo - Pinnies

O shortbread é um típico biscoito escocês, produzido apenas com três ingredientes: açúcar, manteiga e farinha. 

E, como qualquer bom biscoito, precisa apenas de duas coisas: bons ingredientes e um bom artesão.

Desde pequeno que nunca fui um grande apreciador de shortbread.
Todos os que conheci eram industriais e, na variante de bolachas e biscoitos empacotados, a minha preferência recaiu sempre sobre outro tipo de bolacha.

Foi assim que vivi, feliz e contente, até que o destino me fez cruzar com a “Pinnies and Poppy Seeds”.

A Manela sempre se disse uma apreciadora de shortbread, e, uma vez na Escócia não perdeu a oportunidade de provar os diversos shortbread à venda quer nos cafés, quer nas pequenas lojas do comércio local. No entanto, grande parte era industrial ou idênticos aos industriais, o que reforçou a minha opinião sobre os mesmos.

A Pinnies ficava literalmente do outro lado da rua do hotel em que, normalmente costumávamos ficar em Edimburgo, numa das esquinas da St. Mary’s street
Era discreta e talvez por isso nos foi passando ao lado do ‘radar’. Até que um dia não fugiu do ‘radar’ da Manela que lá foi comprar umas bolachinhas para comer mais tarde.
E foi a nossa (leia-se minha) desgraça.

Numa única e pequena sala, a loja era também a fabrica dos biscoitos. Não seria por isso de estranhar que, ao entrar, nos deparássemos com alguém a retirar travessas de biscoitos de um forno semelhante ao das casas das nossas mães, ou a mudar os mesmos de outro tabuleiro saído do forno, mas já mais frio, para uma travessa ou um prato.
Mas, sobretudo, lá dentro, era natural o cheiro adocicado e quente dos biscoitos acabados de fazer.

Junto à porta, no pequeno balcão, estavam expostas as variedades de shortbread desse dia. Desde o imprescindível e clássico biscoito simples (que bastava), aos parcialmente cobertos de chocolate, ou aos mais exóticos com lavanda ou outro qualquer ingrediente diferenciador. Enfim todo um pequeno leque de sabores, que ia variando diariamente, mas cuja base era sempre o clássico shortbread

A produção caseira e diária, levava a algumas características peculiares, para uma loja normal. A quantidade máxima vendida por cada cliente era limitada (caso se pretendessem mais biscoitos do que esse limite havia que encomendar de véspera), e, no final do dia, quase não valia a pena lá entrar, uma vez que quase todo o stock estava esgotado.

E foi assim que, para mim, Pinnies passasse a ser sinónimo de shortbread (‘O’ shortbread), e as nossas mães passassem a sonhar com o nosso retorno de Edimburgo, na expectativa de receberam uma caixa com uma dúzia de biscoitos, a serem comidos parcimoniosamente.

Mas infelizmente todo este texto está escrito no passado.
Problemas pessoais levaram a que a dona e cozinheira da “Pinnies and Poppy Seeds” tivesse que fechar a loja, não havendo expectativa de a voltar a abrir.

Mas, triste consolo, a perca não foi só minha.
Após o fecho da Pinnies, sempre que, em Edimburgo, perguntamos onde é que é possível comprar shortbread, do autêntico, sistematicamente o nosso interlocutor fica pensativo e, após alguns segundos, diz: “havia uma loja na St.Marys com shortbread muito bom, mas fechou… agora assim, não sei o que possa dizer…”


Informação adicional em:
Pinnies and Poppy Seeds
Pinnies and Poppy Seeds - facebook

terça-feira, 17 de março de 2020

Viajar… em binário

2005 - Paris - Conciergerie
Nestes tempos de pandemia, diz-nos a razão de que devemos ficar em casa. O problema é que a perspectiva de ficarmos confinados a horizontes “curtos” nos faz desejar querer alargá-los.
Quem, como eu, está sempre pronto para ver o que se esconde atrás da linha do horizonte, as próximas semanas, senão meses, avizinham-se problemáticas.

É certo que tenho acesso a um quintal, onde me posso ir entretendo a arrancar ervas daninhas (sorte de que nem toda a gente se pode gabar de ter). No entanto tenho a certeza de que tal tarefa não me vai ocupar o tempo todo.
Não só porque não é o trabalho dos meus sonhos, como o quintal não é assim tão grande, nem o crescimento das ditas ervas assim tão rápido.
Por essa razão tenho que pensar em ocupar-me com mais qualquer coisa.

Enquanto ia ocupando os meus pensamentos com esta questão (outra forma de passar o tempo), vieram-me à cabeça os versos de uma velha música do Sérgio Godinho, “E então tu olhaste / Depois sorriste / Abriste a janela e voaste” (in “A noite passada”).

Primeiro esta passagem fez-me ficar com uma pequena inveja por não poder fazer o mesmo (o voar, claro, porque tudo o resto ainda me é permitido). Depois pus-me a pensar se não estaria a ser um pouco piegas, ou armado em “menino mimado”.

Nos tempos que correm, mesmo fechado numa sala, tenho possibilidade de “abrir uma janela e voar” (obviamente no sentido figurado).
Se no século passado, o mais próximo que tínhamos de uma “janela para o mundo” eram os livros ou as revistas, ou eventualmente a televisão, hoje, quando se tem acesso a um computador com ligação à Internet, os limites são um bom bocado mais alargados.

Na Internet não há só noticias, redes sociais ou músicas. Existe de facto um mundo. Mais concretamente existe um mundo da Google, o Google Earth.

Quando apareceu (e já lá vão muitos anos) foi uma curiosidade. Ver a terra de cima (muitas das vezes com uma definição que deixava muito a desejar), era algo de novo e interessante. Mas, passada a novidade, esta aplicação saiu do meu “radar”. O mais próximo que utilizava era o Google Maps, mas mais pelos mapas do que pelas imagens de satélite.

Agora, nesta minha demanda por ter algo com que me entreter, regressei lá.

Confesso que passei um bom par de horas a “viajar” e descobrir o mundo.
A versão actual, não só nos permite continuar a ver as imagens de satélite, como também nos propõe jogos e visitas a locais, ou conjuntos de locais (agregados por situação geográfica ou por tema), através do Street View.

Claro que se pode sempre dizer que não é a mesma coisa. Mas pelo menos permite-nos acalmar a sensação de fechamento, e ir “viajando” por muitos outros lugares... e permitir que as ervas voltem a crescer, garantindo-me mais algumas horas de ocupação.


Nota:
o modo Street View tem também a possibilidade de visitar o interior de alguns museus ou edificios, como os que aqui se seguem, a titulo de exemplo


existe ainda o Google Arts & Culture

no entanto, como alguns só têm “visitas” próprias, deixo também aqui os acessos


e há também aqueles museus que nem sequer existem fisicamente